Fux divergiu de posicionamentos do relator
Rosinei Coutinho/STF
Fux divergiu de posicionamentos do relator

O voto do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do ex-presidente  Jair Bolsonaro (PL) e outros sete réus por uma suposta tentativa de golpe de Estado, pode se tornar a base para pedidos de revisão e anulação do processo.

As declarações de Fux, desta quarta-feira (10), foram amplamente elogiadas por parlamentares e advogados, que vêem nelas um respaldo técnico robusto e um questionamento direto à legalidade do julgamento.

Sobre isso, o ministro destacou que, como Jair Bolsonaro responde por atos cometidos durante o exercício da Presidência, cabe ao Plenário do STF analisar as ações penais contra ex-chefes do Executivo.

“Meu voto é no sentido de reafirmar a jurisprudência desta Corte. Concluo, assim, pela incompetência absoluta do STF para o julgamento deste processo, na medida em que os denunciados já haviam perdido os seus cargos”, afirmou.

Fux também acolheu a preliminar de cerceamento de defesa, ao considerar que houve violação ao contraditório e à ampla defesa, já que os advogados receberam grande volume de dados sem prazo adequado para examiná-los e preparar a estratégia.

No mérito, ao avaliar a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR), o ministro entendeu que os fatos narrados não configuram crime nos termos da lei que trata de organizações criminosas.

Fux ainda afastou os argumentos que ligam os réus aos crimes de deterioração de patrimônio tombado e dano qualificado.

“É importante analisar o papel do crime de dano em relação aos princípios da política criminal, um deles é o da subsidiariedade. De acordo com esse princípio, um delito só pode ser considerado se não houver um crime mais grave que o absolva. Em outras palavras, o crime de dano funciona como um soldado de reserva, sendo aplicado apenas quando a conduta do agente não se encaixa em uma infração penal mais séria”, justificou.

O posicionamento do ministro foi comemorado pelos aliados de Bolsonaro e pelas defesas dos réus. Embora não tenha surpreendido, uma vez que já era esperado que Fux apresentasse divergência dos demais ministros, a profundidade das declarações do magistrado foi vista como uma brecha para que, futuramente, o processo seja questionado.

Segundo a análise dos parlamentares da oposição e advogados presentes, as intervenções de Fux destacaram pontos críticos que ferem o devido processo legal e questionam a competência e imparcialidade da corte.

Na avaliação dos aliados e de especialistas, isso pode servir de subsídio para embasar os recursos das defesas após a conclusão do julgamento.

“Esse voto [do Fux] macula a questão do cerceamento de defesa. Acho fundamental destacar que quem disse isso da tribuna, num caso dessa magnitude e responsabilidade, foi a defesa, que não teve acesso pleno aos autos. Fux lembrou algo que mencionei na tribuna, que foi o fato de recebermos cópia do processo em junho e, depois, em julho. Portanto, é absolutamente impossível afirmar que o direito de defesa foi garantido em sua plenitude. É um voto assertivo”, avaliou José Luis de Oliveira Lima, advogado do general Walter Braga Netto.

Foro por prerrogativa de função

Um dos pilares do voto de Fux, destacado pelos defensores de Bolsonaro, foi o questionamento sobre a competência absoluta do plenário ou da turma para julgar o caso. O líder da oposição na Câmara, deputado Zucco (PL), afirmou que “nenhum dos envolvidos tem foro, ou seja, incompetência absoluta de ser julgado nesta turma” e, por isso, defendeu a “anulação de julgamento por incompetência parcial”.

Para Zucco, o voto de Fux representou um “sopro jurídico”.

Ele ressaltou que o processo, ou parte dele, deveria ser remetido para a primeira instância, caso os réus não possuam foro privilegiado. Alternativamente, se o ex-presidente Jair Bolsonaro estiver sendo julgado “como se fosse presidente da República”, a prerrogativa de julgamento deixaria de ser da Primeira Turma e passaria a ser do Plenário completo do STF.

“Teremos, com certeza, a entrada de dezenas, centenas de pedidos de revisão e de anulação do processo com o voto que foi dado. E para quem não entendeu, fica claro, nas palavras do ministro, que esta decisão não é jurídica. No momento que estamos julgando pessoas sem foro, fica claro e evidente que não podemos julgar politicamente e é o que está sendo feito” , declarou Zucco.

Outro ponto levantado pelos parlamentares da oposição foi o desrespeito ao devido processo legal, citado por Fux. Os deputados enfatizaram o “cercamento de defesa”, lembrando que “70 TB para o grupo de advogados de defesa analisarem em tão pouco tempo” sugeriu a necessidade de um pedido de vista para que a advocacia fosse respeitada.

“O voto do ministro nos enche de esperança. Ele, com certeza, não vai mudar a decisão da Primeira Turma, porque nós estamos diante de uma decisão política e não de uma decisão apenas técnica, jurídica. Mas sem dúvida alguma, o voto do ministro abre um grande precedente para que amanhã esta decisão seja questionada e voltemos a ter esta revisão futuramente. Esta é uma esperança que nós tenhamos, ainda que isto não estabeleça nesse momento a justiça, mas em algum momento será restabelecida”, disse o deputado Otoni de Paula (MDB).

Organização criminosa

Em seu voto, Fux também abordou a inexistência de fundamentação para que se fale em organização criminosa.

Para o ministro, a atuação dos acusados não preenche os requisitos previstos em lei para configurar o crime de organização criminosa. Ele destacou que não ficou comprovado o uso efetivo de armas nem a coordenação entre os envolvidos para a prática de delitos com pena superior a quatro anos.

“Na narrativa apresentada, não há elementos que demonstrem a prática do delito de organização criminosa” , afirmou.

Para os aliados de Bolsonaro, isso corrobora as argumentações da defesa.

“Em algum momento da história Alguém fez um golpe sem arma de fogo?” , questionou Zucco.

Além disso, o deputado reiterou a “possibilidade clara da imparcialidade do julgamento”. Essa imparcialidade é questionada devido às presenças de Moraes como relator, já que o ministro seria “vítima e também julgador”; de Zanin que, sendo “advogado do então presidente, recebeu como prêmio a indicação”; e de Dino, que, segundo a oposição, “já entrou na justiça contra o presidente Bolsonaro e se declarou e se declara comunista”.

Os parlamentares destacaram a presença do ministro Alexandre de Moraes, “declaradamente inimigo de Jair Bolsonaro”, e de “outros quatro ministros indicados pelo PT” na turma de julgamento. “Temos esperança, sim, em uma revisão futura, onde a defesa possa recorrer, ainda que o caso volte mais uma vez para a Primeira Turma”, reforçou o deputado André Fernandes (PL).

“Agora, que fique registrado: o julgamento está acontecendo em uma turma onde temos Alexandre de Moraes, declaradamente inimigo de Jair Bolsonaro, pelo menos nas suas expressões faciais, nas suas falas, no seu desejo, que é claro e nítido quanto a isso. E outros quatro ministros indicados pelo PT. Fux está nos dando orgulho, Fux está honrando a toga. Por isso, nós vamos pedir a anulação de tudo”, assegurou Fernandes.

Precedente para anulação

A declaração de Fux é vista como embasamento para desencadear uma série de contestações.

O voto, na visão dos aliados de Bolsonaro, foi considerado de “maior embasamento jurídico” até o momento, o que gera “uma grande insegurança jurídica” e reacende a esperança de que a “justiça será restabelecida” e prepara o terreno para futuras batalhas legais em torno da legalidade e da imparcialidade do processo.

Para Armindo Madoz, mestre em direito, advogado e professor do Centro Universitário Estácio de Brasília, o voto de Fux abriu uma “divergência importante” ao questionar a “ competência para julgar Jair Bolsonaro, já que ele não ocupa mais cargo público”.

Além disso, apontou que, caso fosse mantida a competência, o julgamento deveria ocorrer no plenário do STF, e não apenas em uma turma com cinco ministros.

Na visão do especialista, esses dois pontos “criam margens significativas para que a defesa recorra, alegando nulidade processual por vício de competência e de rito”.

De acordo com Madoz, nesse caso, as defesas poderiam utilizar de recursos como embargos de declaração, para apontar omissões ou contradições no acórdão (destaca-se a possibilidade de os embargos terem efeitos infringentes, ou seja, possibilidade de reversão do resultado do julgamento); embargos infringentes, caso a decisão não seja unânime, buscando fazer prevalecer o voto de Fux; habeas corpus que, embora não seja um recurso, eventualmente pode ser utilizado também para questionar diretamente a competência do STF ou a nulidade do julgamento em turma; e questões de ordem ou arguições de incompetência, que podem levar o caso ao plenário ou remetê-lo à primeira instância.

“As implicações imediatas são o prolongamento do processo e a abertura de novos caminhos processuais e debates jurídicos. A posição do Ministro Fux pode servir de base para recursos e pedidos de anulação, que podem atrasar a análise de mérito definitiva do caso. Caso esse entendimento prevaleça, o processo pode ser remetido à primeira instância ou mesmo reiniciado no plenário do STF, o que enfraquece a linearidade da acusação e aumenta a incerteza sobre o desfecho, fora o custo temporal e econômico do julgamento”, avaliou o professor de Direito.

Dessa forma, Madoz analisou que o voto de Fux oferece à defesa “uma linha sólida de argumentação, baseada em aspectos processuais e não no conteúdo da acusação”.

“Isso permite questionar não apenas a competência do STF, mas também a regularidade do julgamento em turma, em vez do plenário. Na prática, a defesa ganha instrumentos para apresentar recursos, embargos e pedidos de nulidade, ampliando as possibilidades de postergar ou até anular etapas do processo”, acrescentou.

Embora existam diferenças entre o caso de Bolsonaro e a Operação Lava Jato — que resultou na prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e acabou anulada anos depois por irregularidades processuais reconhecidas pelo próprio Supremo —, o professor avalia que o voto de Fux abre espaço para que a ação por tentativa de golpe de Estado siga o mesmo caminho de anulação.

“Se a tese prosperar e o processo for anulado ou fragmentado, é possível que o caso tenha destino semelhante, com decisões sendo revistas, processos deslocados e eventuais responsabilizações enfraquecidas. A problemática, neste caso específico, gira em torno do prazo prescricional, tendo em vista que, segundo o Código Penal, em decorrência da idade de Bolsonaro (70 anos), o prazo de prescrição dos crimes praticados é reduzido pela metade”, concluiu.

Placar do julgamento

A Primeira Turma do STF entrou, nesta manhã, no quarto dia de julgamento dos integrantes do chamado Núcleo Crucial da suposta trama golpista.

A sessão foi aberta às 9h com a leitura do voto do ministro Fux que, até o momento, foi o único a se posicionar pela absolvição de Jair Bolsonaro.

Com o voto de Fux, o julgamento alcançou o placar de dois votos pela condenação dos réus e um pela absolvição.

Na terça-feira (9), os ministros Alexandre de Moraes, que é o relator da ação penal, e Flávio Dino votaram para condenar os envolvidos.

Nesse cenário, falta apenas mais um voto para que a Primeira Turma forme maioria pela condenação dos réus.

O julgamento será retomado na quinta-feira (11), com os votos dos ministros Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, os únicos que ainda não se manifestaram.