CANÇÕES QUE FALAM POR NÓS “MINHA HISTÓRIA”: Por Rui Leitao
CANCOES QUE FALAM POR NÓS
“MINHA HISTÓRIA”: Por Rui Leitao
Nesta série de crônicas tenho procurado interpretar letras de canções genuinamente brasileiras, mas resolvi fugir à regra, em razão da profunda mensagem deixada na música “Minha história” de Chico Buarque. A sua gênese vem da Itália, nos anos de 1943, quando Lucio Dalla e Paola Pallottino, compuseram “Gesú Bambino”, que quer dizer “menino Jesus”. Fala sobre as mães solteiras, no período da Segunda Guerra Mundial, que engravidavam de soldados estrangeiros. Na letra os italianos procuraram observar o contexto na visão dos próprios filhos.
Chico, amigo de Dalla, decidiu adaptá-la à nossa realidade, tomando como cenário o cais de um porto. O protagonista da história, também chamado Jesus, é filho de uma prostituta, e vive o drama de não saber quem é o seu pai, que pode ser um dos muitos marinheiros que passaram pelos cabarés frequentados por sua mãe. Chico resolve colocar “Minha história” como título de sua versão. A censura da ditadura militar proibiu por um tempo a sua veiculação, por entendê-la atentatória aos bons costumes e à moral. Coisa de mentes doentias dos que tinham a responsabilidade de analisar a produção cultural da época.
“Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar/Eu só sei que falava e cheirava e gostava do mar/Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente/E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente…”
O menino convivia com sua dor, sua angústia de não conhecer pai, nem ter esperanças de conhecê-lo um dia. Só sabe que era um marinheiro, como tantos a que estava acostumado ver no ambiente portuário. Com as características próprias dos marujos, tatuagem nos braços, ouro nos dentes, e cheirando ao mar. Foi por um desses homens que sua mãe se apaixonou perdidamente e daí foi gerado. Fruto, portanto, de uma relação sem amor, circunstancial, comercial.
Nada fora da normalidade daquela ambiência. Os marinheiros transitam por lá e vão embora sem desejos de constituírem vínculos. Entretanto, sua mãe se apaixonara por um deles, que vem a ser o seu pai desconhecido. E nesse amor não correspondido, ela ficava horas a fio contemplando o mar, sonhando com seu retorno. A imagem de uma mulher que fazia do sexo profissão, desencantada, pobre, mal vestida, na esperança permanente de ver de volta aos seus braços aquele que continua no seu pensamento.
Ao nascer, sua mãe viu o filho como se fosse algo divino, um santo, como qualquer outra mãe. Acolheu-o envolto num manto, na ternura materna olhando-o com veneração. Lembra que quando ia colocá-lo para dormir ouvia como cantigas de ninar as músicas que faziam sucesso nas noites dos cabarés. Não conhecia canções de acalanto.
Ela parecia alucinada com a chegada do filho. Chamava a atenção de todos, tentando mostrar que ali estava alguém especial, diferente de qualquer outra criança. Para ela tinha algo de excepcional, sagrado. E foi por isso que resolveu colocar nele o nome de Jesus. Talvez para assim tentar afastá-lo do pecado original na sua concepção, redimir-se de alguma culpa pela forma como ele foi gerado.
A sua história entra em confronto com o nome que carrega. Sabe que não honra no seu comportamento e nas suas atitudes a importância do nome que lhe colocaram. A contradição: o pervertido, por força das companhias do cotidiano, amantes e ladrões, sendo chamado pelo nome de quem a humanidade reconhece como o filho de Deus feito homem. No entanto assim é tratado por todos, Menino Jesus. Quem sabe a intenção de sua mãe foi evitar que fosse chamado de outra forma como tantos outros em igual situação que moravam no porto. Pelo menos o livrou de ser apontado como o “filho da p…”.
www.reporteriedoferreira.com.br Por Rui Leitão- Jornalista, advogado e escritor