CASTRO ALVES, CERTAMENTE, ESCREVERIA UM NOVO POEMA Por Rui Leitao
CASTRO ALVES, CERTAMENTE, ESCREVERIA UM NOVO POEMA Por Rui Leitao
““Senhor Deus dos desgraçados!/Dizei-me vós, Senhor Deus!/Se é loucura… se é verdade/Tanto horror perante os céus…”. Este é um dos versos de Castro Alves no seu célebre poema “Navio Negreiro”, publicado em 1869, portanto há mais de 150 anos, em que o poeta baiano faz uma denúncia da forma desumana como os escravos africanos eram transportados para nosso país. Essas pessoas viajavam acorrentadas e vítimas de açoites, num tratamento desumano, entre elas mulheres e crianças de colo, numa prática de violência abominável.
As condições degradantes dessas longas viagens, lembradas sempre que lemos essa obra dramática, que tem como subtítulo “a tragédia do mar”, nos convoca a fazer uma reflexão sobre a opressão e o desrespeito à dignidade humana que continuam sendo executadas pelos que se acham poderosos. Lamentavelmente, é um passado que não morreu. Impossível não fazer uma analogia com o tratamento conferido aos imigrantes deportados pelo governo Trump. Castro Alves, se ainda estivesse entre nós, apenas mudaria o subtítulo para “tragédia no ar”.
As condições precárias com que 88 dos nossos compatriotas foram colocados num avião, expulsos do território americano, ainda que não possam ser comparadas com o sofrimento imposto aos negros que chegaram aqui na condição de escravizados, expõe uma semelhante natureza cruel de infligir dores fisicas, psicológicas e morais a pessoas indefesas. No sábado passado, assistimos pela mídia as imagens terríveis e degradantes de brasileiros sendo submetidos a humilhações pela decisão de um líder político enlouquecido que procura mostrar-se “dono do mundo”. Algemados pelos pés e pelas mãos, esses brasileiros que foram para os EUA atraídos pelo “sonho americano”, viajaram por dezenas de horas até chegar a Manaus, sem direito a alimentação, uso de sanitários e banho. O objetivo claro era o de criar terror e medo aos países latinos, com a adoção da política migratória do novo governo dos Estados Unidos, na promessa de promover uma deportação em massa dos 11 milhões de imigrantes que ainda estão por lá, considerados “indocumentados”.
Durante o trajeto dos EUA ao Brasil, o avião apresentou problemas técnicos que obrigaram a tripulação fazer um pouso na capital amazonense, sem abandonar a intenção de prosseguir a viagem ao seu destino final, Minas Gerais, nas mesmas condições do início. O ambiente dentro da aeronave era tenso, preocupante e insuportável, principalmente, porque o ar condicionado deixou de funcionar, forçando a abertura das saídas de emergência, dando oportunidade a que pudessem solicitar socorro.
Ao tomar conhecimento do que estava acontecendo, o governo brasileiro decidiu proteger os seus cidadãos, numa afirmação de que não abriria mão do compromisso de defender a soberania nacional. O presidente Lula determinou a retirada das algemas e correntes de todos os que estavam no avião, acolhendo-os no aeroporto, oferecendo alimentação, assistência de saúde e de higiene, considerando inadmissível a continuidade daquela violação aos direitos fundamentais, o que contrariava, inclusive, os termos de acordo com os Estados Unidos, que prevê o tratamento digno, respeitoso e humano dos repatriados. Foram conduzidos à capital mineira em vôo da Força Aérea Brasileira.
Isso faz com que voltemos a citar um dos versos do poema de Castro Alves, quando diz: “Existe um povo que a bandeira empresta/
P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…/E deixa-a transformar-se nessa festa/
Em manto impuro de bacante fria!…/Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,/Que impudente na gávea tripudia?/Silêncio. Musa… chora, e chora tanto/Que o pavilhão se lave no teu pranto! ..”. Só que, desta vez, a nossa bandeira não serviu para cobrir “tanta infâmia e cobardia”. O Brasil não silenciou diante de tamanha agressão aos valores democráticos e à soberania nacional. A chegada desses imigrantes foi bem diferente da indecente e vergonhosa recepção aos escravos africanos no período colonial.
www.reporteriedoferreira.com.br / Rui Leitão- advogado, jornalista, poeta, escritor