FALTA DE AR Por Gilvan de Brito
FALTA DE AR Por Gilvan de Brito
Acordei-me às seis horas no Plano Piloto de Brasília. Era dia 18 de outubro de 1994, e estava com dor de cabeça. Era uma dor fina, parecendo que o meu cérebro estava sendo perfurado com uma longa agulha. Tentei me levantar, mas o corpo não respondeu. Os olhos cansados e as articulações das pernas e dos braços doíam. Faltavam forças para dar um impulso que me tirasse do leito.
– Você está muito doente; tem que cuidar da saúde – adverti a mim mesmo.
Com um esforço maior consegui sentar-me na cama e levantar-me a caminho do banheiro, onde realizei, com dificuldade, as tarefas matinais de higiene e limpeza do corpo. Não me deu vontade de seguir para o Ministério. O corpo não atendia aos desejos. Mas a responsabilidade falou mais alto e eu arrumei-me, desci, entrei no carro e com muita dificuldade dirigi até a Esplanada. Parei no estacionamento, saí do carro e olhei em volta. Estava tudo cinzento, a cidade estava coberta por uma névoa espessa que impedia a visão do Congresso Nacional, onde se via apenas os traços das conchas. No lado oposto não consegui ver a torre de TV nem a rodoviária. Da catedral, à frente, via-se apenas uma mancha branca com umas armações que pareciam de súplicas aos céus contra aquele estado de coisas. Nunca tinha visto aquilo e indaguei de um lavador de carros que se aproximava:
– Que foi que houve com a cidade que existia aqui?
– É fumaça, Senhor. O mato está queimando lá em cima – disse apontando para uma elevação por trás do Congresso Nacional.
O vento frio em torno dos 10 graus envolvia meu corpo enquanto caminhava para a entrada do ministério, quando senti que estava com falta de ar nos pulmões, e por mais que eu me esforçasse não conseguia desenvolver a respiração com normalidade. Na cabeça uma bola de chumbo substituíra o cérebro e todos os ossos do corpo doíam, mas eu subi até a minha sala, onde liguei a entrada do ar refrigerado e tentei dar o meu expediente. Mas a situação estava crítica. A respiração continuava ofegante e isso me trouxe alucinações auditivas, delírios, apatia e embotamento do cérebro, alterando as comunicações. Os sinais eram evidentes, algo muito grave estava acontecendo comigo. Já não reconhecia as pessoas, ouvia precariamente o que diziam e expressava frases desconexas, trovejando num delírio de verbos, sujeitos e adjetivos. Era um comportamento extremamente extravagante e antes de me privar do raciocínio, o que levaria meus colegas de trabalho a me considerar alienado, talvez excêntrico ou pelo menos esquisito, por essencial prudência resolvi regressar ao apartamento para me deitar durante algum tempo na tentativa de me recuperar daquelas estranhas sensações que dominavam meu corpo. Em casa bebi meio litro d´água por exigência do organismo, dormi um sono marcado por fenômenos psíquicos sobressaltados por terríveis pesadelos e acordei-me com tremenda dor de cabeça às 20 horas. A bola de chumbo ainda estava lá. Apanhei o controle remoto e liguei a TV no Jornal Nacional. Então, vi com espanto a primeira notícia:
– Brasília teve hoje o dia mais seco de toda a sua história. A umidade do ar chegou a atingir apenas sete por cento segundo informação do Instituto Nacional de Meteorologia.
Pensei comigo: Então foi isso. Um castigo para quem nasceu no litoral e se criou numa umidade que sempre variou entre 70 e 99 por cento, ao nível do mar. E continuei vendo a notícia:
– O presidente Itamar Franco mandou a Secretaria de Administração Federal baixar instrução liberando o funcionalismo público da cidade no período da tarde. A medida foi seguida pelo governador Joaquim Roriz, que liberou além dos funcionários, todos os alunos das escolas públicas do Distrito Federal enquanto durar o período seco. O atendimento nos hospitais foi reforçado para acolher às milhares de pessoas que os procuraram e a situação deve permanecer inalterada até amanhã. Os operários de empresas privadas e estatais não devem realizar esforço físico. Toalhas molhadas podem ser colocadas no espelho da cama e os borrifadores elétricos devem permanecer ligados para orvalhar o ambiente durante esta noite.
Fiquei impressionado com a força da natureza contra as fragilidades do ser humano numa região inóspita, onde a temperatura desce a 7 graus e a relatividade que mede a umidade do ar acompanha, nos mesmos níveis, tornando a sobrevivência insuportável. Felizmente isso só ocorre no fim do período seco. Com efeito, na semana seguinte choveu e tudo voltou à normalidade. São apenas algumas semanas de horror que se tornam inesquecíveis. Já pensaram o que é procurar o ar para respirar e não o encontrar na quantidade que necessitamos e na pureza que o conhecemos? Uma espécie de asfixia coletiva. Pois isto existe, eu conheci e agora posso contar os seus efeitos nocivos ao corpo humano a filhos e netos; futuramente aos bisnetos. Mas, Brasília exerce uma atração difícil de ser explicada sobre as pessoas, e não são esses fenômenos da natureza que nos impede de continuar morando ou visitando a Capital Federal. Porém, daquele período seco, eu corro às léguas. Infelizmente Juscelino Kubitschek nunca lera, antes de criar Brasília, resolução da Organização Mundial de Saúde que considera impróprias de serem habitadas áreas que apresentem relatividade do ar abaixo dos 15 por cento, apontadas como nocivas e, consequentemente, prejudiciais às funções orgânicas, físicas e mentais. A respeito de Brasília, não é preciso dizer mais nada. Basta que se visitem os hospitais neste período. Vamos ver que a OMS tem razão e que Kubitschek foi reprovado em Geografia.
www.reporteriedoferreira.com.br Por Gilvan de Brito- Jornalista, advogado, escritor e poeta.