“Com uma vocação ditatorial que não lhe permite conviver com instituições democráticas, Bolsonaro prepara ataque a governadores”, escreve Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democracia
Por Paulo Moreira Leite, do Jornalistas pela Democraci
Comprometido até a medula pela tragédia do coronavírus, a guerra de Bolsonaro contra os governadores de Estado constitui um esforço óbvio de sobrevivência de um governo que inicialmente desprezou a pandemia. Mais tarde, sabotou todas as possibilidades para minimizar seus efeitos. Agora, precisa encontrar o indispensável bode expiatório.
Desde a AP 470, iniciada por uma denúncia de seu atual aliado Roberto Jefferson, o país aprendeu que as investigações de corrupção são um velho recurso das autoridades para reconstruir a ordem política ao sabor de suas conveniências.
Num país onde a necessária preocupação com o bom emprego de recursos públicos também se presta à manipulação política, Bolsonaro descobriu uma fantasia adequada para a Covid-19. Consiste em sustentar que o morticínio — pelo qual o presidente tem responsabilidades no plano absoluto — é produto da corrupção de governadores e prefeitos que se valeram de compras milionárias de equipamentos e insumos da China para desviar dinheiro público.
Como encenação didática, tudo foi resumido na porta do Alvorada. Na quarta-feira, quando uma eleitora indignada lhe apontou o dedo, acusando-o de traição, Bolsonaro mandou que saísse dali e fosse reclamar com “seu governador”. Errado.
Depois de mostrar uma reação de estranho incômodo com um ministro da Saúde que conseguia boa aprovação em pesquisas de opinião, graças à aplicação do feijão-com-arroz da medicina para enfrentar uma pandemia, Bolsonaro mobilizou o governo para atacar qualquer vestígio que lembrasse as recomendações da Organização Mundial de Saúde, em especial pelas quarentenas. O resultado todos sabemos.
Correndo atrás de uma imaginária consagração, Bolsonaro só alcançou novos conflitos, derrotas e mortes, muitas mortes. Há dez dias, a Covid-19 já matava um brasileiro (a) a cada minuto e 38 segundos. Hoje, a média diária de óbitos do Brasil é a mais alta do mundo e deve piorar.
Com uma vocação ditatorial que não lhe permite conviver com a diversidade política inerente aos regimes democráticos, o choque de Bolsonaro com instituições que expressam a soberania popular e o regime de liberdades instituído pela carta de 1988 não é uma opção ideológica — é um destino.
Responsáveis pelo segundo nível de gestão do Estado brasileiro, logo abaixo da presidência, em sua diversidade os governadores de Estado sempre asseguraram uma indispensável oxigenação e diversidade as democracias. Tornaram-se um alvo permanente do Planalto, de mãos livres depois que Sérgio Moro deixou a Justiça e o comando da Polícia Federal.
Antes que fosse possível procurar — e encontrar — irregularidades na construção de hospitais de campanha no Rio de Janeiro, Wilson Witzel já se encontrava no radar do Planalto por outra razão. Bolsonaro suspeitava que estivesse em busca de laços capazes de envolver 01 e 02 no assassinato de Marielle Franco. Encontrado o motivo, faltava encontrar um crime.
O ataque ao governador do Pará, Helder Barbalho, produziu mais petardos midiáticos do que consistência jurídica. Após horas de estardalhaço, não foi possível sustentar que o dinheiro do contribuinte tenha sido desviado para intermediários que operam no mundo sombrio de respiradores e insumos médicos importados. Apareceu até um pequeno saldo a favor do erário.
Ali também surgiu um ponto claramente político. Alberto Beltrame, secretário de Saúde do Pará, é presidente Conselho Nacional dos Secretários de Saúde, onde tem uma atuação especialmente crítica em relação aos desmandos do bolsonarismo. Quando o governo tentou controlar a divulgação de dados sobre a Covid-19, Beltrame respondeu em cima. “Essas informações são propriedade do povo brasileiro”, disse.
A guerra parece longe de encerrada, porém. Há prováveis adversários no Nordeste, região com uma coleção de governadores oposicionistas. Não só. Carla Zambelli já fez várias referências de que João Dória pode ser atingido em breve. Quem sabe?
O que se sabe é uma verdade mais simples. Depois da AP 470 e da Lava Jato, as investigações contra a corrupção se transformaram em operações contra a democracia.
Alguma dúvida?
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