O poeta paraibano Manoel José de Lima, mais conhecido como Caixa D’Água, em entrevista publicada no Correio das Artes, um dos suplementos literários mais antigos do País, afirmou que “imortal é um homem que fica na lembrança”. O que justifica a capa da edição que homenageou o poeta, há exatos dois anos, em março de 2004, que estampa em letras garrafais – o imortal – para defini-lo.
Em João Pessoa, difícil é encontrar quem não o conheça. Aos 72 anos de idade, costuma ser visto por volta das sete da noite no Parque Sólon de Lucena, na Lagoa. É nessa hora que ele pode ser encontrado em uma tradicional banca de jornal do centro da cidade. Hábito que mantém há 40 anos.
Querido pelos proprietários, uma cadeira lhe é reservada, para que possa sentar-se em frente ao estabelecimento e calmamente fazer sua leitura diária. Jornais e revistas lhe fazem companhia por um bom tempo, e ele não tem pressa para terminar. Sai de casa por volta das três horas da tarde, “já almoçado”, como ele faz questão de lembrar, e circula pelas ruas centrais da cidade até por volta das dez da noite. Isso agora, porque nos bons tempos de boemia, não tinha hora para voltar.
Mas o espírito da noite e da boemia ainda lhe acompanham, e a única coisa que faz Caixa D’Água alterar sua rotina é o lançamento de livro ou algum evento ligado à literatura ou ao jornalismo. Nesses dias, é lá que ele vai ser encontrado, pois segundo afirma, são todos seus amigos, e faz questão de prestigiar.
Completa a atmosfera desses ambientes com o seu tradicional terno branco e sua maleta preta, onde carrega livros e os cigarros. “Eu não posso faltar. Eu conquistei a amizade de todos os meus colegas jornalistas, poetas e escritores, convivo com eles há muito tempo”, afirma, mostrando a seguir a Carteira de número 2238 da Associação Paraibana de Imprensa (API), onde está inscrito como colaborador.
Como tudo começou – Manoel José de Lima nasceu no dia 05 de janeiro de 1934, no interior da Paraíba, município de Cruz do Espírito Santo. Casado há 30 anos com Maria de Lúcia Oliveira, pai de três meninas, a mais velha atualmente cursa Direito. O mais novo de doze irmãos, três homens e oito mulheres. Hoje, apenas uma irmã ainda é viva, e ele lembra com saudades dos pais, a mãe dona de casa e o pai agricultor.
Ele conta que veio para João Pessoa em 1947, aos 13 anos, em companhia de uma irmã. Fez o curso primário, onde aprendeu a ler e escrever. Concluiu o curso ginasial, quando decidiu parar de estudar. Hoje, ainda mora na rua da Areia, centro da cidade, e costuma passear pela Ladeira da Borborema.
Recorda-se com carinho que o pai queria que ele fosse fazendeiro, enquanto a mãe preferia vê-lo médico. Nesse momento da narrativa, questiono se o traje branco tem algo a ver com o desejo da mãe. Ele desconversa. Da mesma forma que faz quando indagado sobre outras atividades que teria exercido ao longo dos seus 70 anos, além de escrever, e sobre o significado da alcunha, Caixa D’Água. Quando o assunto lhe desagrada, simplesmente muda o tom da conversa, e para isso não lhe falta imaginação.
Diz que médico não haveria de ser, porque tem “ódio” de hospitais, e que jamais desejou viver a experiência sofrida do homem do campo, como o pai. Aos 10 anos, com a morte da mãe, escreveu seu primeiro poema, “Caminho Perdido”. Faz um esforço para lembrar alguns versos, e conta que ele pode ser encontrado no livro de Tejo. Refere-se ao escritor paraibano Orlando Meira Tejo, que em seu clássico livro, “Zé Limeira, o Poeta do Absurdo”, dá o seguinte depoimento.“Presença sempre requisitada nas rodas intelectuais da capital paraibana, onde é querido e admirado, Caixa D’Água diz, invariavelmente:
– Sou o poeta Manoel José de Lima, o famoso Caixa D’Água. Na Paraíba, só quem anda de branco somos eu, José Américo de Almeida e Renato Ribeiro, mas Renato é só industrial e eu e José Américo somos grandes intelectuais.
Não sem algum esforço, ele lembra alguns versos do seu primeiro poema. “Se as noites envelhecessem./ Se meus olhos cegassem./ Se os fantasmas dançassem em blocos de neve./ Para que ensinassem./ O caminho por donde eu caminhei./ A cidade sem porta./ As ruas brancas de minha infância que eu não volto mais”.
Considera a poesia uma arte, e ama a literatura. Ama todos os escritores paraibanos, e costuma ler todos eles. Além de revistas e jornais. Cita Rachel de Queirós, Ernani Sátyro, José Américo de Almeida, Elísio Matos e o poeta Augusto dos Anjos. E cita também José Lins do Rego, que considera seu conterrâneo, pois segundo ele, “somos da mesma região”.
Caixa D’Água observa que “João Pessoa é a terra dos poetas e escritores. Agora, o que falta, na minha opinião, é ter o apoio dos governantes. Eles precisavam ajudar os escritores pobres, que não têm verba suficiente. Mas mesmo assim os escritores não deixam de escrever”.
Os livros – Já são dezoito livros publicados, todos graças aos seus esforços e alguma colaboração dos amigos. Está preparando o próximo, que espera poder lançar em junho, depois da festa de São João. O título do novo trabalho é “A profecia do profeta que deu certo”, um misto de poesia e histórias, onde ele irá narrar sua história de vida entre os 10 e 20 anos, época que segundo ele, tudo que profetizou acabou acontecendo.
Costuma levar seis meses para preparar um livro. “Primeiro, escrevo tudo à mão, depois passo à limpo”, explica um dos poetas mais populares de João Pessoa, que diz já ter nascido poeta. Publicou a primeira obra aos 18 anos, e costuma arquivar e guardar todas as reportagens que falam sobre ele ou sobre seus trabalhos publicados. Vaidoso, afirma que são muitos os registros.
Um registro – O cineasta paraibano Walter Carvalho realizou um documentário sobre a cidade de João Pessoa, “A Memória e a Cidade”, com suas memórias e olhares sobre o lugar que ele deixou há quase 40 anos. Para isso, ele ouviu e registrou depoimentos de algumas pessoas que considera importantes expressões locais. Uma delas é Caixa D´Água, que Walter afirma ser o continuador da poesia de Zé Limeira, o poeta do absurdo.
A entrevista – Caixa D’Água diz que os lugares que mais gosta em João Pessoa, são a Lagoa e a Praia de Tambaú, e o ClickPB escolheu uma das tradicionais mesas de um dos bares da Lagoa, para conversar com ele. À vontade, cumprimentando um conhecido aqui, outro ali, ele nos contou um pouco da sua vida.
Mas uma rápida interrupção, logo no início da conversa, nos dá a noção do quanto Caixa D’Água é conhecido e querido. Um advogado aparentando meia-idade, copo de cerveja na mão, se aproxima. Ele conhece o poeta desde a década de 80, e chega logo perguntando qual o assunto da entrevista. A preocupação do velho conhecido é motivada, segundo ele, pelo fato de que algumas pessoas, afirma, insistem em querer transformar o poeta Manoel José de Lima em figura folclórica. Esclarecidas as intenções, apenas contar sua história, o velho amigo dá-se por satisfeito e se retira. A conversa segue.
Lilla Ferreira
Clickpb
NÃO ME TOCs (II), por José Mário Espínola
O poeta Caixa d’Água e o tribuno Mocidade
Embora cidade grande e capital do Estado, João Pessoa teve um rico panteão de figuras folclóricas. Portadoras de manias que podiam ser classificadas como TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo) também formaram um segmento social, como nas cidades pequenas.
Os que são da minha geração lembram bem de algumas figuras exóticas, ou esquisitas. Era o caso de Pão-de-Bico, que foi como apelidaram o Sr. João Ramalho. Padeiro, percorria a cidade empurrando seu carrinho tocando um realejo e apregoando os seus produtos: “Pão de bico, suíço e doce!” A molecada anarquista o provocava (de longe, é claro). Quando ele gritava “Pão-de-bico!”, a meninada respondia: “Suicidou-se!” Ele respondia com referências pouco edificantes às mães dos moleques.
Lembro-me de dois irmãos, Catabio e Catapedra, ambos doidos. Tinha também o Levi Doido. Ele dava expediente todo uniformizado, certo de que era servidor. Às vezes saía com o Governador no carro oficial. No fim do governo, João Agripino pediu a Otacílio Silveira que levasse Levi para o Tribunal de Contas e ele ficou por lá até o fim da vida.
Havia David, megalomaníaco, outro personagem da capital, que achava que se dizia “Ô Dono do Mundo”. Chegava ao Banco do Estado da Paraíba e sentava no birô do gerente. Entrava numa repartição do Estado ou da Prefeitura e demitia o governador ou o prefeito.
Durante seu mandato, o governador João Agripino Filho adorava ser cortejado e cultivava um povo folclórico em torno dele. Depois foi sucedido pelo governador Ernani Sátiro, que também tinha lá os seus.
***
Havia em João Pessoa o Grande Tribuno das Calçadas, mestre-orador Mocidade, um intelectual de origem modesta, que bebia muito e percorria a cidade proferindo discursos brilhantes, todos de improviso. Seu nome era João da Costa e Silva.
João Costa e Silva, o Mocidade
Ele frequentava muito a Faculdade de Direito, onde Francisco Espínola, meu pai, lecionava Direito Penal, e meus irmãos estudavam. Mocidade falava com sotaque francês, carregando no ”R”. Sempre que via Humberto, gritava: “Jurrrriiista!”
Como morava perto de nós, às vezes aparecia lá em casa. Mamãe odiava, mas papai tratava muito bem. Certa vez, ele passou a noite sentado num toco na frente de nossa casa, fazendo discurso, para desespero de mamãe. E apontava para papai, dizendo: “Tu és justitia!” Papai paciente: “Vá dormir, Mocidade.”
Corria por essa época a ditadura militar, e Mocidade aproveitava as manifestações da estudantada para destilar impropérios contra os militares e (ele não se continha!) contra o governo do Estado.
Certa noite, João Agripino chegou à residência oficial do Governador, então no Cabo Branco, e ao passar pela cozinha encontrou ninguém mais, ninguém menos que Mocidade tomando uma sopa. Não conseguiu resistir:
– Muito bem, seu Mocidade: passou a tarde discursando contra mim, e agora está aí tomando da minha sopa!
Mocidade fez uma pausa segurando a colher, olhou blasé de soslaio, dizendo:
– Ora, governador: governo foi feito para sofrer!
E voltou a se dedicar à sua sopa.
Rubens Nóbrega(Rubão)