O HOMEM DOS 40 Por Gilvan de Brito

O HOMEM DOS 40 Por
Gilvan de Brito

Num começo de tarde muito quente de 1982, cheguei ao aeroporto dos Guararapes (antigo) para embarcar com destino ao Rio de Janeiro. Era um desses dias de semana sem muito movimento. Ao fazer o chek in, vi que o aeroporto ainda se encontrava em reformas com algumas escoras e muita poeira. Então, para fugir das metralhas, mostrei a minha carteira da FENAJ (Federação Nacional dos Jornalistas), que me abria muitas portas e fui encaminhado à Sala Vip onde havia apenas uma pessoa. Retirei o Jornal do Brasil da alça da maleta e antes de abri-lo para ver as manchetes olhei para o lado, a surpresa: era o sambista João Nogueira, cujas músicas ocupavam as primeiras colocações nas paradas de rádios e televisão. Eu mesmo tinha o último CD de sua autoria intitulado

“O homem dos 40”, na sua inconfundível e agradável voz grave e aveludada. Pensei comigo: falo, não falo. Decidi que não falaria em respeito ao aparente cansaço que demonstrava, pois devia vir em trânsito de alguma cidade do Norte, quem sabe viajara a noite inteira depois de realizar algum show na noite anterior, e ali estava à espera da conexão que o levasse ao Rio de Janeiro onde estava à sua disposição uma cama amiga para se recuperar.

Vi pela parede de vidro que o avião estava chegando e alegrei-me ao saber que não haveria atraso. Comecei a ler o Jornal do Brasil, vendo primeiro as manchetes dos cadernos de esportes, cultura, política e administração. Minutos depois os alto falantes anunciaram o embarque e eu segui ao lado do artista para tomar lugar no avião, obedecendo a regra de que os passageiros da Sala Vip são liberados imediatamente, antes dos demais passageiros. Subi, fui à frente, encontrei a poltrona 14 F, coloquei a bolsa de mão no bagageiro acima e sentei-me, procurando estirar as pernas naquele curto espaço. Para a minha surpresa, João Nogueira veio atrás e tomou o outro assento (14 D), do corredor, quase vizinho e colocou a bagagem de mão na poltrona do meio.

– Sempre faço isto e fecho os olhos quando se aproxima alguém, para evitar a presença de algum gordo besuntado na poltrona do meio; às vezes o dono da poltrona chega, não quer importunar e vai procurar outro assento – disse amistosamente olhando nos meus olhos e sorrindo. Quando ele falava parecia sorrir, pela conformação da boca e dos olhos redondos e grandes, acompanhando a curva das sobrancelhas, de modo que ninguém sabia ao certo quando estava ou não sorrindo de verdade. Depois falou sobre vários assuntos, disse que fizera um show em Manaus e que saíra daquela cidade de madrugada, fazendo escalas em Belém, São Luís, Fortaleza e Natal; estava um bagaço.

Estranhei a sua cordialidade, demonstrando um comportamento muito diferente daquelas celebridades que conhecia de perto. E disso não lhe fiz segredo.
– Quando o vi na sala de embarque logo o reconheci, mas não quis invadir a sua privacidade. E agora me arrependo disso, porque já deveríamos nos ter conhecido antes para falar sobre o CD “O Homem dos 40”, que tem essa música título e outra da qual eu gosto muito – disse.
Ele quis saber da outra música e, por não me lembrar do título, cantei as primeiras estrofes:
TRANSFORMAÇÕES
João da Gente e Jurandir

Minha companheira foi embora
A solidão veio comigo morar
Já não tenho mais os lindos sonhos
Não tenho ninguém a me esperar
Quando eu me lembro
Daqueles olhos tristonhos
Sinto até vontade de chorar…

– Ah, chama-se Transformações; também gosto muito dessa música – revelou enquanto assinava alguns autógrafos solicitados pelos passageiros mais próximos.

Seguimos conversando sobre a sua saída da Portela para fundar a Escola de Samba Tradição, os 11 discos gravados até aquela data, do bloco Clube do Samba, da família de artistas da qual emergira e de alguns parceiros dos quais considerava Paulo César Pinheiro o mais importante na sua carreira. Fizemos uma escala em Salvador, onde ele desceu, comprou uma xilogravura de Caribé, tomou suco de laranja e atendeu aos fãs que o cercaram como acontecia em toda parte. Depois voltamos ao avião, ele dormiu, finalmente, e em pouco mais de uma hora desembarcamos do turboélice Samurai de 80 lugares no aeroporto Santos Dumont.
– Qualquer dia a gente se vê aí pelas quebradas – despediu-se com um toque de mãos espalmadas. Nunca mais nos encontramos, mas eu sempre comprava um disco novo, quando surgia, e foram muitos (18, ao todo, com 145 músicas gravadas).

Depois soube de sua morte prematura, um infarto fulminante, no ano 2000. João, quando o conheci pessoalmente, era um homem dos 40, como eu, apenas um ano mais novo; nascido em 1941. Fiz um minuto de silencio em sua homenagem, em casa ouvi o disco “O Homem dos Quarenta” e espantei-me com a premonição dos letristas João da Gente e Jurandir na música Transformações, justamente uma das que tanto eu quanto ele mais gostavam.
TRANSFORMAÇÕES
João da Gente e Jurandir

 

… Não me dá mais prazer
Contemplar o luar
Pelo buraco do teto do meu barracão
Que já não é mais palácio encantado,
Hoje estou magoado,
ferido no coração.
E até esta vida que eu tanto amo
Sinto que está chegando ao fim.
O meu barracão de madeira,
Lá em Mangueira,
Sem ela não nada para mim…

O compositor carioca havia composto até aquela data mais de 300 músicas, muitas delas interpretadas por Clara Nunes, Elizeth Cardoso, Elis Regina, Beth Carvalho, Alcione, dentre outras. Em resumo, foi bom ter encontrado João Nogueira, ocasionalmente, durante essa viagem, para filosofar sobre pensamentos avulsos. Tinha certeza de que jamais o veria novamente depois daquela pequeníssima e circunstancial brecha no espaço, mas o que é a vida senão a lembrança desses momentos que nos transportam na moldura do tempo?

www.reporteriedoferreira.com.br Por Gilvan de Brito- Jornalista, advogado e escritor.