O MEU AVÔ ROLDÃO CORREIA DE BRITO: Escrito Por Gilvan de Brito

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O MEU AVÔ ROLDÃO CORREIA DE BRITO: Escrito Por

Gilvan de Brito

Saindo de João Pessoa com o meu pai numa maria fumaça da Great Western, fui encontrá-lo pela última vez, velhinho, cansado, lá pela metade da década de 40, na sua casa antiga da rua Treze de Maio, 232, em Campina Grande. Meu pai às vezes o visitava conosco (minha mãe Corina e minha irmã Gilza, ainda nos cueiros). Ele era determinado e tinha uma força física que contrastava com a fragilidade de sua aparência. Parece que gostou oo neto, porque saiu pelo galpão mostrando as máquinas que estavam prontas para a entrega, feitas por ele: de fabricar e cortar doces, de fabricar manteiga e queijo, máquina de pasteurização, prensa para extração de óleo do caroço do algodão, peças de bolandeira, portões de cemitérios (ferros quadrados, retorcidos e sextavados com motivação barroca) e mais uma infinidade de coisas que não pareciam ter saído de uma bigorna, uma forja, uma prensa manual e um martelo. Isso valorizava a sua imaginação fértil, e suas mãos firmes de competente artesão no comando das ações.

Dessa última vez, de pelo menos cinco, em que eu estive com ele, mandou-me sentar numa cadeira ao lado da forja, colocou um avental de couro e um par de óculos que lhe cobria parte do rosto e dirigiu-me um olhar inextrincável, talvez piedoso para mim, ao passar a mão sobre a minha cabeça, sabendo que ali estava um dos ramos mais humildes da árvore, família. Pegou com uma enorme tesoura um pedaço de ferro da espessura de um dedo, levou-as ao calor da forja enquanto subia e descia a ponta do fole para levar vento às brasas. Seguidamente, caminhava para a bigorna, dava marretadas no ferro em brasa, oferecendo um formato à peça. Ao mesmo tempo as faíscas pululavam com vigor, tomando vida própria ao iluminar o ambiente, num espetáculo à parte, levando-me, temeroso, a proteger o rosto com as mãos. Primeiro, achatou a extremidade superior, depois bateu nas laterais e o transformou numa cabeça sextavada. Em seguida, minuciosamente, com muito esmero esquentou a peça, colocou-a numa prensa manual, prendeu a ponta com um alicate de pressão e girou-a para criar os sulcos circulares, mostrando que aquela peça era a imitação de um parafuso. E a conclusão era correta. Sabia instintivamente como fazê-lo.

Ele cortou-a com uma talhadeira no exato tamanho que imaginara e, ao final, mergulhou a peça em brasa num balde d´agua, quando subiu uma fumaça marrom com cheiro acre. Notava-se o seu entusiasmo enquanto realizava a obra prima. Ainda com o parafuso preso a grande tesoura de ferro, fruto de sua criatividade, usou a lima para desbastá-lo em alguns pontos dos sulcos circulares, enxugou-o e o estirou na minha direção, ainda preso à tesoura, proporcionando-me um presente, um parafuso artesanal, talvez o mais original que recebi em toda a minha vida, porque foi feito com o amor do avô pelo neto, certamente o mais carente da família, tanto quanto ele também o era, antes de sua notoriedade na labuta com o ferro. No meu progressivo processo de amadurecimento a imagem do meu avô sempre esteve presente, como incentivo para dar continuidade a alguma coisa que se encontrava travada.

Despois, já adulto, dei-me conta de sua exuberância nos passos, no olhar altaneiro e nos gestos, circulando com elegância, deslizando suavemente na sua oficina, e no íntimo trato que demonstrava no manuseio da sua matéria-prima. O ferro era conduzido em brasa da forja para a bigorna, da bigorna para a prensa e da prensa para o esmeril de acabamento, e de volta à bigorna onde sofria alteradas marretadas para a criação de órbitas de fagulhas que circulavam pelo ar e morriam antes de chegarem ao chão. Um círculo que se tornava vicioso à vista de qualquer pessoa. A marreta, de tão grande e pesada, não sei como ele conseguia levantar tantas vezes para bater no ferro quente, um castigo para uma pessoa que já ascendera dos 70 anos, numa época em que a vida no Nordeste tinha uma média que se estabelecia pouco acima dos 50. Parecia o personagem de uma história que ainda não fora escrita, uma espécie de Quixote dos trópicos envolvido numa aventura em que se dispensava as características fantasiosas da luta contra os moinhos de vento e de vez em quando assumia o realismo fantástico de Sancho Pança. E o meu pensamento continuava voando alto da forma como pensavam os adultos: por qual motivo um ser humano numa idade daquela, precisava submeter-se a uma tirania daquele tipo, qual seja, a de trabalhar de forma tão vigorosa e aviltante, exposto ao calor sufocante, o que certamente levaria um corpo a reclamar do cansaço dos braços, das pernas, dos músculos e, principalmente, dos nervos.

Mas ele nunca se queixava dessa provação. Esse era o seu lado fantástico, onde a arte dava substância a vida. Era o imaginário que orientava toda a sua obra. Era nesse ponto onde residia toda a sua genialidade, extrapolando o seu empírico campo de ação. Assim, pelo que foi, constituiu-se na melhor parte da vida de todos os filhos, que o adoravam e, também, daquele humilde neto presenteado que passara a exaltá-lo durante toda a vida, e até alimentar o desejo de um dia fazer este livro para contar a história e perpetuá-lo diante das novas gerações que naturalmente surgirão vidas afins e subsequentes. Era cordial, reservado e tinha uma voz firme. Meu pai Gilberto Correia de Brito dizia que chegou a vê-lo usando Kipá ou Solidéu (touca), o paramento de vestuário utilizada pelos judeus como símbolo da religião Judaica. Deixou de usá-lo depois que começou a frequentar a igreja evangélica, em Campina Grande. Afinal, era um cristão-novo, veio com a família para nordeste brasileiro diante das ameaças e do temor de ser queimada viva pelos católicos da Inquisição, em Portugal. Sempre quando sinto alguma dificuldade na vida, lembro-me dele, da sua determinação, levanto a cabeça e sigo em frente. (Do meu livro em elaboração: “Um Minuto de Silêncio – memórias de Gilvan de Brito”

www.reporteriedoferreira.com.br  Por Gilvan de Brito-Jornalista-Advogado e Escritor